Há algum tempo venho pensando sobre algumas coisas que, como em muitas narrativas, se naturalizam, tornam-se quase invisíveis e, por isso, não paramos para pensar nelas. Nesse momento, é a isso que chamo mitos. Não aquele mito filosófico, histórico, mas algo que vai se tornando uma narrativa repetida e que muitas vezes repetimos sem nos darmos conta do impacto e da dimensão que tem o que estamos falando. Muitas vezes ouvi no consultório, de pessoas amigas, em filmes, etc. estórias sobre aquele difícil momento em que se conta sobre a separação para os filhos. Não importa a idade, sempre é um momento doloroso para todos. Como pais, todos queremos proteger nossos filhos do sofrimento, poupá-los dos efeitos de decisões que os afetam tão diretamente, mas sobre as quais não tem nenhuma ingerência. Talvez por isso, seja lugar comum dizer aos filhos algo como: "Papai e mamãe não vão mais morar juntos, não estaremos mais casados, mas não se preocupem, continuaremos amando vocês como sempre. Nada vai mudar, vocês estarão sempre com o papai e com a mamãe. Terão um quarto em cada casa e, etc.etc.etc."
Nossa angústia, sofrimento, e nosso amor pelos filhos, transforma a perspectiva do divórcio em uma fantasia de que a única coisa que vai acontecer é uma mudança de casa. A frase "nada vai mudar" fica martelando na minha cabeça. Como assim nada vai mudar? Como assim, as coisas serão iguais. Para o filho, tudo vai mudar! Claro, sabemos que aqueles pais continuarão amando seus filhos como sempre. Continuarão desejando todas as boas coisas para eles, principalmente que eles não sofram. Isso é o que não vai mudar. Mas, muitas outras coisas vão mudar. Mesmo nos divórcios mais tranquilos, menos conflituosos e que realmente trazem benefícios a médio prazo para as famílias, a curto prazo todos tem que lidar com mudanças. E, mudanças são difíceis, mesmo quando são boas. Quem já não mudou de casa para uma casa melhor, maior, mais bonita que sempre sonhou? E, quem, mesmo nessa mudança tão desejada já não ficou nervoso, estressado, sem rumo, tropeçando em caixas e sentindo-se desorganizado porque não lembra onde colocou os livros de trabalho, o material da escola, a roupa para sair no dia seguinte?
Em uma separação, estaremos mudando isso e muito mais. Cada um pode pensar no seu divórcio e avaliar quantas coisas mudaram desde aquele dia. Aliás, sem o divórcio também, a vida só faz mudar. Mas, uma decisão dessa monta, traz alguns processos que tornam tudo instável de uma maneira mais aguda.
Por que temos tanto medo de conversar assim com nossos filhos? Uma cena marcou-me muito e acho que me ajudou a construir outra perspectiva sobre isso. Quando me separei do pai dos meus filhos, eles eram muito pequenos e eu e ele conversamos, acho eu, a conversa padrão: "Tudo estará aqui, quando você quiser estará com seu pai, etc.etc. etc." A tentativa de garantir que vamos continuar fazendo o possível para que eles não sofram. Um dos meus filhos anos depois, não sei precisar quantos, me diz em uma conversa sobre a separação que, naquele dia, só lembra de que "só ele sofreu". Na sua narrativa, nem eu nem o pai dele "estávamos muito aí para a separação". Fiquei tão perturbada, mas ao mesmo tempo curiosa com tal afirmação. Tão distante da minha experiência e da do pai dele também. Continuei a conversa, tentando entender como ele havia construído tal ideia. E, chegamos ao cenário em que ele lembrava que ninguém além dele havia chorado. Apenas ele. Portanto, para ele, só ele havia sofrido. Essa conversa me fez pensar durante muito tempo. Não me lembro de ter chorado ou não, mas lembro da dor ao falar com eles. E, talvez, tenhamos feito mesmo um esforço para não chorar, os adultos, para tornar as coisas mais possíveis para nós e para as crianças. Mas, hoje penso que talvez uma boa conversa sobre separação com os filhos deva incluir a dor. Talvez dizer que vai ser difícil, que muitas coisas vão mudar, para melhor e talvez algumas para pior. Que todos precisarão se esforçar para se adaptar à nova vida e que com certeza tentarão fazer o melhor para que as coisas dêem certo. Talvez, possamos falar que, se estamos fazendo tanto movimento, é porque achamos que vale a pena, mas que em algumas horas vai ser difícil para todos e que eles podem contar com seus pais para estar ao lado deles nos momentos difíceis e nos bons. E que, mesmo as coisas mudando, e eles nem sempre gostando das mudanças, seus pais estarão sempre dispostos a garantir que possam conversar e ser ouvidos. Além, é claro, da garantia do amor , apesar de uma forma diferente de convivência. Talvez uma tentativa de temer menos a dor e incluí-la. Acredito que isso possa nos aproximar de nós mesmos e um dos outros. Podermos expressar nossa vulnerabilidade de uma forma verdadeira possa manter e/ou criar conexões entre pais e filhos, irmãos, etc. Se não tememos, talvez seja por ter a confiança de que temos recursos para lidar com o contínuo fluxo de mudanças da vida.
Enfim, são meus pensamentos sobre o tal mito do "nada vai mudar"...
Bom feriado a todos!
P.S: A foto é do filme A Lula e a Baleia sobre o qual podemos falar em outro post.
quinta-feira, 23 de junho de 2011
Mitos sobre divórcio - parte 1
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